Processos sociais no olhar da Mafalda

Processos sociais no olhar da Mafalda
América Latina e Caribe
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Entrevista com Isabella Cosse

Isabella Cosse é autora de um livro de referência sobre a obra de Quino, e por isso foi convidada a participar de um recente volume publicado em Madrid.

Mafalda está sempre lida. As camadas semânticas que a obra-prima de Quino acumula se complementam e se ramificam. Dentro e fora do país. Aspectos fascinantes que mostram o gênio criativo do humorista mendoza, mas também a artimanha e o profissionalismo com que seus editores divulgaram a tira em outras geografias e culturas. Nesse percurso corre o ensaio que a pesquisadora e professora Isabella Cosse (Conicet, UBA) integra em Cómics y memoria en América Latina, recente volume editado pela Cátedra (Madrid), com tarefa de edição a cargo de Jorge L. Catalá Carrasco, Paulo Drinot e James Scorer. “Os quadrinhos ocuparam um lugar central nos processos sociais e políticos latino-americanos e, principalmente, em determinadas situações em relação à memória. Este é um livro que dá conta dessa amplitude e complexidade”, diz Cosse, cujo livro Mafalda: historia social e político (FCE, 2014) conhece hoje em dia uma tradução em inglês da Duke University Press.

A gênese dos Quadrinhos e da Memória na América Latina surge de uma convocação feita na Inglaterra. Esses dias deram origem a um livro, cuja cadeira é a sua tradução para o espanhol. Algo que pode ser curioso, mas não é tão curioso. Já que o interesse pelos quadrinhos latino-americanos - e especificamente a Argentina - é antigo. Nem é preciso dizer que a ligação entre os quadrinhos locais e internacionais teve que acontecer cedo. Cosse escolhe, entre outros exemplos, o do italiano César Civita, “um dos mais importantes produtores de quadrinhos do país, dono do empório Abril. Ele veio fugindo da guerra e foi um pólo muito efervescente de produção editorial. Além disso, na época do boom das histórias em quadrinhos e do humor gráfico, nos anos 60 e 70, na Argentina, cartunistas e autores dialogavam desde sua própria criação com as tendências do quadrinho em nível internacional ”.

- Nesse contexto, a Mafalda surge precisamente.

--Ao começar a cuidar da Mafalda , percebi que havia uma dimensão internacional, transnacional. É talvez o quadrinho latino-americano mais conhecido e lido, e essa dimensão teve que ser levada em consideração. Esse foi um trabalho duplo. Por um lado, saber como a Mafalda chegou a diferentes lugares; e por sua vez, se o sucesso foi possível, foi porque a Mafalda adquiriu novos significados em cada um desses lugares. A Itália foi a porta de entrada, seguindo o editor e jornalista Marcelo Ravoni, que teve que sair por causa da ditadura de Onganía. Ele convocou Quino para uma primeira publicação, com uma seleção de tiras. Havia um recorte ali que poderia ser potencialmente interessante. Isso acontece em 1968, e Ravoni destaca as questões relacionadas à repressão, mobilização estudantil, politização, sexualidade e novos métodos parentais, que envolviam muito a situação da época, as classes trabalhadoras, as classes. mídia, estudantes e jovens na Itália. Penso que esta possibilidade de apropriação da Mafalda é proporcionada sobretudo pelo desenho e criação conceptual de Quino, mas também pelo trabalho desenvolvido por editores e jornalistas, privilegiando umas leituras mais do que outras. É muito curioso que na Espanha, durante o regime de Franco, quando Mafalda tinha muitas ressonâncias em relação à repressão e à leitura nas entrelinhas, tivesse uma revista que pretendia ser referência nos quadrinhos de língua espanhola, como foi o El Globo como seu animal de estimação. No primeiro número (março de 1973) ela está na capa e é a figura que abre os leitores e comentários editoriais.

- Mesmo quando Quino parou de desenhar Mafalda em 1973, ele ainda continuou com ilustrações e declarações ocasionais; neste sentido, é relevante a sua referência a Mafalda como um dos 30 mil desaparecidos.

-Quino despede-se da Mafalda mas a Mafalda , pelo seu dinamismo, exige-o, e isso o assusta e a certa altura o favorece. Na época da restauração democrática, deu-se uma espécie de intervenção de Quino em torno da possibilidade de pensar a Mafalda como expressão da geração dos anos 1960, e deu-se uma espécie de jogo coletivo, no qual intervieram diferentes vozes. Há um elemento muito importante que é esta possibilidade de pensar a Mafalda como uma pessoa desaparecida num momento de grande significado, de discussão pública, de instalação da agenda dos direitos humanos. Não é por acaso que isso aconteceu, Mafalda foi uma forma de aproximar a tragédia dos desaparecidos da sociedade argentina como um todo, e nesse momento ela desempenha um papel na memória social, de uma primeira aproximação, processamento e leitura, sobre a geração dos anos 60 e o seu compromisso político.

Mafalda foi uma forma de aproximar a tragédia dos desaparecidos da sociedade argentina como um todo

- Mesmo quando Quino parou de desenhar Mafalda em 1973, ele ainda continuou com ilustrações e declarações ocasionais; neste sentido, é relevante a sua referência a Mafalda como um dos 30 mil desaparecidos.

-Quino despede-se da Mafalda mas a Mafalda , pelo seu dinamismo, exige-o, e isso o assusta e a certa altura o favorece. Na época da restauração democrática, deu-se uma espécie de intervenção de Quino em torno da possibilidade de pensar a Mafalda como expressão da geração dos anos 1960, e deu-se uma espécie de jogo coletivo, no qual intervieram diferentes vozes. Há um elemento muito importante que é esta possibilidade de pensar a Mafalda como uma pessoa desaparecida num momento de grande significado, de discussão pública, de instalação da agenda dos direitos humanos. Não é por acaso que isso aconteceu, Mafalda foi uma forma de aproximar a tragédia dos desaparecidos da sociedade argentina como um todo, e nesse momento ela desempenha um papel na memória social, de uma primeira aproximação, processamento e leitura, sobre a geração dos anos 60 e o seu compromisso político.

Mafalda foi uma forma de aproximar a tragédia dos desaparecidos da sociedade argentina como um todo

- Apoio também ao Alfonsín durante os eventos da Semana Santa

-Na época, há uma discussão entre humoristas e do meio artístico sobre o papel do humor em relação à política. Quino faz uma espécie de autocrítica, em relação ao papel que o humor desempenhou com a queda de Illia. É notória a sua caricatura de tartaruga, algo que tinha impulsionado e expressado um espírito crítico que se tornou, porque é claro um cartoon não explica o golpe, mas dá conta de um estado de opinião pública em que participou o humor. Quino é muito crítico, e naquele momento ele decide tomar uma decisão com um compromisso muito determinado em favor da democracia quando ocorrerem os levantes das Carapintadas. Mande uma Mafalda parabenizando e apoiando Alfonsín. Essa foi uma das intervenções políticas mais claras e significativas de Quino com Mafalda .

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