Prosumidores
por Adalid Contreras Baspineiro *
A insurgência cidadã nas redes sociais tem causado uma das modificações mais marcantes na cartografia comunicacional contemporânea, recompondo, por invasão, a relação entre um pólo emissor de mensagens, tradicionalmente concentrado em um poder monopolista abrangente composto por determinadas elites, mídia e / ou ainda o Estado exercendo papéis transmissivos persuasivos, e algumas cidadanias supostamente passivas situadas no polo de recepção.
Curiosamente, o fator desencadeador dessa recomposição não é um elemento comunicacional, mas basicamente tecnológico, que se transforma em uma dinâmica sociocultural onde as novas gerações nascem e se socializam em outras formas de se relacionarem consigo mesmas, com o seu entorno e com o mundo. A incorporação do mundo da World Wide Web nos processos de comunicação mudou os padrões de consumo midiático, mas também os acessos, abrindo suas fronteiras e, de certa forma, descentralizou os espaços de produção discursiva, bem como a natureza desses espaços. .
Novos padrões de consumo de mídia
Desde a incorporação da web, os novos nativos do planeta são digitais. As gerações anteriores socializaram-se com a imprensa, rádio e televisão, cumprindo papéis de receptores conceitualmente passivos e efetivamente ativos, com capacidade de redefinir mensagens. Algumas experiências, como a rádio popular, já transgrediram esse esquema com a contundência da participação, do diálogo e de projetos de sociedade inclusiva. A experiência contemporânea, que suscita o acesso e a participação, é outra, diferente, tanto nas formas de consumo como nas de produção.
Um primeiro elemento que se modifica no consumo é seu desmembramento pelas instalações técnicas de consumo individualizado, principalmente com o celular e claro, também com tablets e computadores. Estamos vivenciando um processo, por um lado de relocalização das experiências de recepção coletiva, e, por outro, de transição para formas de consumo individual. O rádio ou a televisão, operando como ícones do reagrupamento familiar, são figuras cada vez mais distantes ou voltadas para eventos especiais como um bom jogo de futebol ou notícias importantes. Em anos anteriores, o consumo coletivo conotava um interesse coletivo adquirido e um diálogo coletivo sobre um tema comum.
Essa prática está em processo de ser dividida pelas características de acesso individualizado, em relação a ou com interesses, ou gostos, ou humores, ou necessidades, ou urgências, ou hábitos, também individualizados. Um antecedente desses procedimentos encontra-se no zapping, que permite assistir televisão sem a predominância do meio, mas com as possibilidades seletivas e decisórias do consumidor, em um mar diversificado de ofertas de cabo e satélite. Essa prática supera uma situação anterior de confinamento em um canal, uma programação, um programa. É verdade que são práticas que ainda vigoram, sobretudo no consumo de telejornais e novelas, assim como também é verdade que, em tempos de crise, os meios de comunicação tradicionais recuperam as suas audiências porque gozam de maior credibilidade. Como em qualquer processo de reorganização, as práticas comunicacionais operam justapostas.
No consumo contemporâneo, como diz Carlos Scolari, “as novas gerações tendem a ver coisas diferentes, em diferentes meios de comunicação e com diferentes modalidades de consumo (ao vivo, streaming, downloads, etc.)”. E assim é esse mundo hoje, onde não é mais o meio que une as individualidades, mas uma narrativa, uma história que pode circular no YouTube, ou no WhatsApp, ou um blog, ou pode ser baixada para ver no computador , ou pegue o link para ver em imagem, ou ouvir em áudio, ou ler, com a possibilidade de repeti-los se quiser, ou pará-los no meio e retroceder.
Em qualquer caso, o consumidor pode acomodar a oferta de acordo com suas necessidades, ou interesses, ou humores e, além disso, divulgá-la por outros meios diversos, pois pode parecer que a história é importante, ou engraçada, ou mesmo com a ilusão de mostrar um furo. Ou seja, recebe e também (re) envia e (re) produz.
Outros padrões de produção discursiva
Mas talvez a recomposição mais marcante que está ocorrendo no campo do consumo é ter aberto também espaços de produção mista: fragmentados e compartilhados, tanto pelos meios tradicionais, de massa, que estão sendo chamados de mídias pré-digitais, quanto nas pós-digitais. que operam na lógica descentralizada das redes sociais digitais.
É aqui que nascem os prossumidores, desenvolvendo processos de remixagem (remixing) e / ou pós-produção que não giram mais apenas na ressignificação de imaginários, mas também na produção de novas narrativas, seja como arranjos, arranjos, retoques ou reconfigurações. de mensagens já estabelecidas, ou também com outras criações discursivas, ou novos personagens ou histórias.
O termo prosumers foi proposto por Alvin Toffler a partir da década de oitenta do século passado, para destacar a união de funções entre produtores e consumidores. Em seu sentido contemporâneo, caracteriza-se por forjar formas de exposição de narrativas por meio de sistemas crossmídia e transmídia, que não se explicam apenas em facilidades tecnológicas, mas basicamente em uma atitude comunicativa que leva ao desenvolvimento cotidiano, como forma cultural estabelecida, práticas de apropriação, modificação e recirculação das mensagens às quais são atribuídos os seus próprios significados. Ou seja, o consumidor é incorporado às narrativas (re) construindo-as.
Crossmedia, como o próprio nome indica em inglês, significa cruzar (cruzar) a mídia (mídia). Trata-se de apresentar de forma coerente a mesma história por meio de diversos meios, suportes, canais e plataformas que se reforçam, formando uma unidade como um todo. A sua referência imediata são os sistemas multimédia, dos quais se diferencia por se basearem na interactividade entre diferentes suportes que trabalham na mesma mensagem, passando agora a relação a partir da convergência integrada que as plataformas digitais permitem.
Já a transmídia se caracteriza pelo fato de exibir uma narrativa em diversos meios, canais, plataformas e formatos, cada um atuando separadamente, com suas próprias linguagens e públicos, sem a necessidade de articulação entre eles para dar sentido. uma história. Cada um conta de forma independente à sua maneira. Nestas condições, já não é a oferta de comunicação que dá convergência a uma história contada em diferentes linguagens e em diferentes suportes, são os consumidores que as articulam, ora acedendo a uma banda desenhada, ora a um artigo de opinião, ou a um vídeo. , ou um podcast, ou com bonecos, ou novelas de rádio. Há convergências entre a produção discursiva das indústrias culturais clássicas com sua estrutura de jornalistas e códigos deontológicos, e a produção discursiva de usuários, que não são regidos por normas e ocupam redes sociais protegidas pela liberdade de expressão.
Destacamos cinco características que caracterizam o funcionamento das redes sociais digitais: autoafirmação, voluntarismo inorgânico, desenroscamento, remontagem social e entropia comunicacional. A diretriz da "autoafirmação" é dada por Manuel Castells, ao conceituar como autocomunicação a capacidade ilimitada de receber, reproduzir e gerar mensagens como rajadas de criações multidiscursivas, refletindo para além da possibilidade tecnológica, a necessidade compulsiva dos cibernautas de se expressar. e tornar-se protagonistas, iniciando com criações identitárias ou anonimamente cumulativas de memes, vídeos, cartazes, fotografias, canções, graffiti, infográficos e artigos que circulam e são reproduzidos na mesma velocidade dos acontecimentos.
As redes operam livres para formas de funcionamento autônomo que se tornam as bases das explosões do “voluntarismo inorgânico”, que, ao operar sem regras ou protocolos, são fabricantes de reiterações, intoxicações e dispersões de mensagens em um turbilhão infinito de informações. Nesse ambiente, o "desenroscamento" é o deslocamento das formas tradicionais de comunicação para outras de "quase interação", assim definidas por John Thompson, por não obedecerem aos cânones das reciprocidades interpessoais ou massivas, mas antes desenvolverem processos de troca simbólicos. -digital em comunidades virtuais.
Além dessa característica, as redes sociais têm um imenso potencial de mobilização quando seus cibercomunitários decidem tecer e atuar em rede e não apenas fazer parte de uma rede. Nas práticas tradicionais, o protesto, o bloqueio e a marcha são expressões de múltiplas presenças que articulam individualidades em um bloco de força. Com as redes sociais, os tweets ou whatsappazos multiplicam por centenas de milhares o número de participantes que procuram fazer uma tendência. Seguindo Bruno Latour, chamamos esse recurso de “remontagem social”, a articulação das individualidades em um funcionamento de complementaridades comunitárias.
Em qualquer caso, viralizando mensagens ou criando uma tendência são processos que não estão isentos de uma sensação de "entropia de comunicação", ou perda de energia e comunicação, pois tende a se confundir com um efeito de ilusão autoindulgente pelo qual cada cibernético -comunidade acredita "o" autor dos resultados, que se explicam, sem dúvida, por uma multiplicidade de outros fatores, que não ficam ao nível das emoções.
Para encerrar este ponto, sublinhemos que as novas tecnologias estabeleceram não só novas formas de consumo, mas também outras formas de produção que, embora baseadas nas condições tecnológicas proporcionadas pelos algoritmos, são já formas de comunicação que se tornaram hábitos e diretrizes culturais. especialmente nas novas gerações que já nasceram em um mundo digitalizado.
Este fenômeno, característico dos nativos digitais, não exclui as gerações anteriores, que também foram absorvidas por esta nova realidade comunicativa, adotando inevitavelmente os dispositivos de uma época digitalizada, embora resistamos em aderir aos seus protocolos, típicos de uma sociedade caracterizada pela sua fragmentação social. , composição política e culturalmente polarizada e comunicacionalmente individualizada.
Comunicação em debate
Para alguns autores, esses processos comunicativos implicam uma ruptura com o difusionismo e a adoção de um sistema participativo. Contrariamente a esta afirmação, defendo que se trata, na verdade, de uma forma informacional renovada, estabelecendo um determinado sistema de quase-comunicação, pois seus dispositivos, generosos de acesso e conectividade, não garantem per se espaços e formas de comunicação como construção de sentidos. . Eles se conectam, mas não necessariamente se comunicam.
São experiências que continuam a se mover na dinâmica do difusionismo, ampliando o pólo da transmissão a uma multiplicidade de atores cujas mensagens circulam em bolhas que se conectam com outras bolhas, onde se reconfiguram esferas de consumo, prosumers e fandoms ou comunidades de fãs que convivem nelas. expandir ad infinitum as funções de recriação das mensagens.
Afirma-se que na ficção científica o consumidor está sujeito à participação e à expansão adaptativa das histórias, por exemplo, produzindo videogames ou jogos de tabuleiro sobre histórias de super-heróis. Isso é comum e também esses procedimentos já fizeram sua incursão na política. Vejamos alguns exemplos tirados das recentes eleições subnacionais na Bolívia. O candidato agora eleito prefeito da cidade de El Alto com uma maioria esmagadora, entre outros recursos recorreu ao tik tok. Perguntaram sobre os responsáveis por sua produção e ele não hesitou em responder que "os meninos são extremamente criativos". Ou seja, seus jovens adeptos que, por iniciativa própria, trabalham em produtos que se somam, complementando, ao eixo da campanha. Ou a experiência do candidato e agora prefeito da cidade de La Paz, que costuma usar vários simbolismos, inclusive bonecos que representam super-heróis, vingadores, para analisar por encenação de situações. Em sua campanha ele teve seu próprio boneco, que o representou. Ele disse que é o trabalho voluntário dos grupos de jovens que o apóiam (fandom) e que eles adaptam amplamente um estilo e móveis característicos para atrair adeptos.
São formas de quase comunicação não comparáveis com as modalidades legítimas de comunicação participativa que, como se sabe ao promover a democratização da comunicação, reclama o direito de acesso, de participação, de diálogo e, acrescentamos, de convivência, o que pressupõe níveis de interpelação.
A participação é uma resposta alternativa à exclusão de poder comunicar, de poder ser e também de poder ter. A participação na comunicação horizontal, participativa, educacional e popular é indissociável da tarefa coletiva de confronto com os poderes que impedem a autoexpressão. Nesse sentido, não é um exercício de expansão ou rearranjo, mas essencialmente de alteração de uma ordem desigual apresentada como natural e legítima.
Não se engane, então, os prosumers não são em si próprios sistemas participativos, mas sistemas de quase-participação que, para serem plenamente participativos, precisam se registrar nos projetos da sociedade, incluindo legitimamente ausências e silêncios que se tornaram presenças vingativas e vozes poderosas.
A participação implica a capacidade de expressar, tornar visível, articular as partes em projetos coletivos e a capacidade de fazer da comunidade um espaço de transformação do que restringe a democracia e a vida em convivência. Senão, em nome da democracia, dos direitos e da participação, vão ser retomados dispositivos como o feed back, o que nos fez crer que participação era uma opinião sobre o que foi dito. Ou, no caso de narrativas transmídia, participação pode ser confundida com a capacidade de reformar, adicionar, adaptar ou estender histórias em múltiplas linguagens e formatos.
Os prosumers já estão presentes na cartografia comunicacional. São fruto dos benefícios tecnológicos que permitem o acesso e das dinâmicas sociais que se fragmentam. Não são réplicas do processo de "emirec" (transmissor-receptor) proposto pela comunicação participativa e popular levantada por Mario Kaplún para construir significados históricos a partir dos povos.
O debate se abre em um cenário que envolve lutas acadêmicas, lutas sociais e práticas de comunicação que se confrontam para gerar sociedades com processos de justiça e comunicação como um direito irrecorrível de falar.
* Sociólogo e cientista da comunicação boliviano, ex-secretário executivo da OCLACC (atualmente SIGNIS ALC)
La Paz, 29 de março de 2021